sábado, 2 de janeiro de 2010
Solenidade da Epifania do Senhor
A Epifania, a "manifestação" de nosso Senhor Jesus Cristo, é um mistério multiforme. A tradição latina identifica-o com a visita dos Magos ao Menino Jesus em Belém, e portanto interpreta-o sobretudo como revelação do Messias de Israel aos povos pagãos. A tradição oriental, ao contrário, privilegia o momento do baptismo de Jesus no rio Jordão, quando Ele se manifestou como Filho Unigénito do Pai celeste, consagrado pelo Espírito Santo. Mas o Evangelho de João convida a considerar "epifania" também as núpcias de Caná, nas quais Jesus, transformando a água em vinho, "manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele" (Jo 2, 11). E que deveríamos dizer nós, queridos irmãos, sobretudo nós sacerdotes da nova Aliança, que todos os dias somos testemunhas e ministros da "epifania" de Jesus Cristo na santa Eucaristia? A Igreja celebra todos os mistérios do Senhor neste santíssimo e humilde Sacramento, no qual Ele ao mesmo tempo revela e esconde a sua glória. "Adoro te devote, latens Deitas" adorando, rezamos assim com São Tomás de Aquino.
É o amor divino, encarnado em Cristo, a lei fundamental e universal da criação. Isto deve ser visto ao contrário em sentido não poético, mas real. Assim o via o próprio Dante, quando, no verso sublime que conclui o Paraíso e toda a Divina Comédia, define Deus "o amor que move o sol e as altas estrelas" (Paraíso, XXXIII, 145). Isto significa que as estrelas, os planetas, todo o universo não são governados por uma força cega, não obedecem às dinâmicas unicamente da matéria. Não devem ser portanto divinizados os elementos cósmicos, mas, ao contrário, em tudo e acima de tudo existe uma vontade pessoal, o Espírito de Deus, que em Cristo se revelou como Amor (cf. Enc. Spe salvi, 5). Se assim é, então os homens como escreve São Paulo aos Colossenses não são escravos dos "elementos da criação" (cf. Col 2, 8), mas são livres, isto é, capazes de se relacionarem com a liberdade criadora de Deus. Ele está na origem de tudo e tudo governa não como um motor frio e anónimo, mas como Pai, Esposo, Amigo, Irmão, como Logos, "Palavra-Razão" que se uniu à nossa carne mortal de uma vez para sempre e compartilhou plenamente a nossa condição, manifestando o poder superabundante da sua graça. Existe portanto no cristianismo uma peculiar concepção cosmológica, que encontrou na filosofia e na teologia medievais altíssimas expressões. Ela, também na nossa época, dá sinais interessantes de um novo florescimento, graças à paixão e à fé de não poucos cientistas, os quais nas pegadas de Galileu não renunciam nem à razão nem à fé, aliás, valorizam-nas a ambas profundamente, na sua recíproca fecundidade.
O pensamento cristão compara a criação com um "livro" assim dizia o próprio Galileu considerando-a como a obra de um Autor que se expressa mediante a "sinfonia" da criação. No interior desta sinfonia encontra-se, a um certo ponto, aquilo a que na linguagem musical se classifica "solo", um tema confiado a um só instrumento ou a uma só voz; e é tão importante que dele depende o significado de toda a obra. Este "solo" é Jesus, ao qual corresponde, precisamente, um sinal real: o surgir de uma nova estrela no firmamento. Jesus é comparado pelos antigos escritores cristãos a um novo sol. Segundo os actuais conhecimentos astrofísicos, nós deveríamos compará-lo com uma estrela ainda mais central, não só para o sistema solar, mas para todo o universo conhecido. Neste misterioso desígnio, ao mesmo tempo físico e metafísico, que levou ao surgimento do ser humano como coroamento dos elementos da criação, veio ao mundo Jesus: "nascido de mulher" (Gl 4, 4), como escreve São Paulo. O Filho do homem resume em si a terra e o céu, a criação e o Criador, a carne e o Espírito. É o centro da criação e da história, porque n'Ele se unem sem se confundirem o Autor e a sua obra.
No Jesus terreno encontra-se o ápice da criação e da história, mas em Cristo ressuscitado vai-se além: a passagem, através da morte, para a vida eterna antecipa o ponto da "recapitulação" de tudo em Cristo (cf. Ef 1, 10). De facto, todas as coisas escreve o Apóstolo "tudo foi criado por Ele e para Ele" (Cl 1, 16). E precisamente com a ressurreição dos mortos Ele obteve "a primazia sobre todas as coisas" (Cl 1, 18). Afirma-o o próprio Jesus aparecendo aos discípulos depois da ressurreição: "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28, 18). Esta consciência apoia o caminho da Igreja, Corpo de Cristo, ao longo das veredas da história. Não há sombras, por muito tenebrosas que possam ser, que obscureçam a luz de Cristo. Por isso nunca falta aos crentes em Cristo a esperança, também hoje, perante a grande crise social e económica que atormenta a humanidade, perante o ódio e a violência destruidoras que não cessam de ensanguentar muitas regiões da terra, perante o egoísmo e a pretensão do homem de se considerar o deus de si mesmo, que conduz por vezes a perigosas alterações do desígnio de Deus sobre a vida e a dignidade do ser humano, sobre a família e a harmonia da criação. O nosso esforço de libertar a vida humana e o mundo dos envenenamentos e das poluições que poderiam destruir o presente e o futuro, conserva o seu valor e sentido escrevi na já citada Encíclica Spe salvi mesmo se aparentemente não tenham sucesso ou pareçam não ter poder face ao predomínio de forças hostis, porque "é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir" (n. 35).
O senhorio universal de Cristo exerce-se de modo especial sobre a Igreja. "Sob os seus pés lê-se na Carta aos Efésios [Deus] sujeitou todas as coisas e constituiu-O cabeça de toda a Igreja, que é o Seu corpo e o complemento d'Aquele que preenche tudo em todos" (Ef 1, 22-23). A Epifania é a manifestação do Senhor, e de reflexo é a manifestação da Igreja, porque o Corpo não é separável da Cabeça. A primeira leitura de hoje, tirada do chamado Terceiro Isaías, oferece-nos a perspectiva clara para compreender a realidade da Igreja, como mistério de luz reflectida: "Levanta-te e resplandece, chegou a tua luz; / a glória do Senhor levanta-se sobre ti!" (Is 60, 1). A Igreja é humanidade iluminada, "baptizada" na glória de Deus, isto é, no seu amor, na sua beleza, no seu senhorio. A Igreja sabe que a própria humanidade, com os seus limites e as suas misérias, ressalta mais a obra do Espírito Santo. Ela não se pode orgulhar de nada a não ser no seu Senhor: não é dela que provém a luz, não é sua a glória. Mas é precisamente esta a sua alegria, da qual ninguém a poderá privar: ser "sinal e instrumento" d'Aquele que é "lumen gentium", luz dos povos (cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium,1).
Trecho da Homilia da Solenidade da Epifania do Senhor, do Papa Bento XVI em 2009.
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