A ORAÇÃO NA VIDA CRISTÃ
“Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração...”
Milton Nascimento – “Canção da América”
- O primeiro tempo ou primeira seção do CIC é dedicado a refletir sobre o lugar da oração na vida cristã. Num primeiro momento, como numa introdução, o Catecismo procura responder a pergunta: o que é oração? Depois, no primeiro capítulo desta seção chamado “A revelação da oração”, conta como o Povo de Deus foi descobrindo a vida de oração. Esse capítulo trabalha, especialmente, com a Bíblia.
- No segundo capítulo chamado “A tradição da oração”, o Catecismo estuda como as gerações foram passando umas para as outras aquilo que descobriram. Finalmente, no terceiro capítulo intitulado “A vida de oração”, ele trata dos métodos e das dificuldades da oração.
- Chamando toda esta seção com o título “A oração na vida cristã”, o Catecismo, certamente, quer oferecer uma reflexão que possa ajudar as comunidades a fortalecer a amizade com Deus. Pois a oração só se entende a partir da amizade. Acolher a Deus na oração é como acolher um amigo, “debaixo de sete chaves, dentro do coração”!
è O que é oração? De onde vem a oração humana?
- O que é mesmo oração?
- Essa é a primeira pergunta que o Catecismo se faz. A resposta começa por um testemunho de Santa Terezinha do Menino Jesus: “Para mim, a oração é um impulso do coração. É um simples olhar lançado ao céu, um grito de reconhecimento e amor no meio da provação ou no meio da alegria”. “A oração é a elevação da alma a Deus ou o pedido a Deus dos bens convenientes” (S. João Damasceno). “A oração, quer saibamos ou não, é o encontro entre a sede de Deus e a nossa. Deus tem sede que nós tenhamos sede dele” (S. Agostinho).
- A partir da experiência e do testemunho dos santos e santas, o Catecismo conclui uma resposta: “a oração é uma relação viva e pessoal com o Deus verdadeiro” (nº 2558). Observem bem a profundidade dessa definição de oração. Segundo ela, a oração é mais que palavras, mais que fórmulas, mais que gestos. É a relação mesma que se estabelece entre Deus e seu povo. Rezar é entrar em relação com pessoas.
- De onde vem a oração humana?
- É o homem todo que reza, qualquer que seja a linguagem da oração (gestos e palavras). As Escrituras falam às vezes da alma ou do espírito, do coração. É o coração que reza. Se ele está longe de Deus, a expressão da oração é vã.
- O coração é nosso centro escondido, inatingível pela razão e por outra pessoa; só o Espírito de Deus pode sondá-lo e conhecê-lo. Ele é o lugar da decisão, no mais profundo das nossas tendências psíquicas. É o lugar da verdade, onde nós escolhemos a vida ou a morte. É o lugar do encontro, pois à imagem de Deus vivemos em relação; é o lugar da Aliança.
- A oração cristã é uma relação de Aliança entre Deus e o homem em Cristo. É ação de Deus e do homem; brota do Espírito e de nós, dirigida para o Pai, em união com a vontade humana do Filho de Deus feito homem.
· Qual a base sobre a qual a oração se alicerça?
· Se a oração é uma relação, ela só vai existir quando houver amizade e amor. Isso quer dizer que a coração é uma relação de intimidade amorosa com Deus.
· Desenvolver essa relação de intimidade com o Senhor não depende apenas de uma capacidade natural da pessoa. A Oração é um dom de Deus. Se a gente quer orar, a primeira atitude deve ser de pedir esse presente gratuito do Senhor. Jesus disse à Samaritana: “Se tu soubesses, tu é quem lhe pedirias e Ele te daria uma água viva” (nº 2559-2561).
· Na Nova aliança, a oração é a relação viva dos filhos de Deus com seu Pai infinitamente bom, com seu Filho Jesus Cristo e como Espírito Santo. A graça do Reino é a união de toda Santíssima Trindade com espírito pleno. A vida de oração desta forma consiste em estar habilmente na presença de Deus três vezes Santo e em comunhão com Ele. Esta comunhão de vida é sempre possível, porque, pelo Batismo, nos tornamos um mesmo ser com Cristo. A oração é cristã enquanto é comunhão com Cristo e se estende à Igreja que é o seu Corpo. Suas dimensões são as do Amor de Cristo.
· Como podemos aprofundar essa descoberta?
· Quando a gente cultiva uma amizade, vai surgindo uma espécie de cumplicidade entre a gente e a pessoa amiga. Suas opções, desejos, projetos tornam-se os nossos. E os nossos projetos, opções e programas tornam-se os dela. O povo da Bíblia usa justamente a palavra aliança para descrever sua relação com Deus, um compromisso de amor-casamento que o Senhor fez com o seu povo e no qual cada crente se situa. Aí se vive a comunhão com Ele.
· No início esta palavra “aliança” implicava mais num pacto militar e num tratado de pertença total e submissa do fiel a Deus. Depois, ela foi tomando esta noção de cumplicidade, de pacto, de parceria.
· O conceito de Aliança é fundamental na Bíblia e na tradição das comunidades cristãs. Ela encontra sua expressão numa fórmula de reciprocidade: “Vocês serão o meu povo e eu serei o Deus de vocês’ (Ez 36,28). Não é à toa que um dos livros mais queridos pelas comunidades cristãs sempre foi o “Cântico dos Cânticos”. A relação de Deus com o povo é como a relação entre o amado e a amada: “Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim.”
· O Catecismo usa também outra expressão para essa mesma realidade: comunhão. É uma maneira inspirada nos escritos de São João, onde muitas vezes aparecem frases como: “A nossa comunhão é com o Pai e o seu filho Jesus” (1Jo 1,3) (Nº 2562-2565).
· Tendo respondido o que é oração, o Catecismo vai contar como o Povo de Deus foi descobrindo e vivendo isso ao longo da história. É como se a gente abrisse um álbum de fotografias e fôssemos recordando momentos-chave de uma caminhada.
· O Catecismo organizou essas fotografias em três partes, que ele chama de artigos, usando o mesmo raciocínio que São Lucas usou para escrever seu Evangelho e os Atos dos Apóstolos. São Lucas divide a história do Povo de Deus em três: o tempo de Israel, o tempo de Jesus e o tempo da Igreja. O Catecismo segue o mesmo esquema para contar como o mistério da oração foi sendo revelado: primeiro mostra como isso aconteceu no Antigo Testamento; depois, na vida de Jesus e, finalmente, na Igreja.
· Antes de fazer isso, o Catecismo lembra que esta busca e sede de Deus não é privilégio do cristianismo: “Todas as religiões testemunham essa procura essencial da humanidade”. Em todas elas, de formas diversas, percebemos “o encontro misterioso da oração”. A oração, mais que uma atitude característica desta ou daquela forma religiosa, aparece como atitude de todas as religiões, manifesta-se como dimensão presente em todos os seres humanos (nº 2566-2567).
1. Definição da Oração
- A história da salvação começa no momento em que o homem se torna capaz de receber a revelação na resposta e na oração. Para nós, o homem não se define a partir do uso de certos instrumentos ou da possibilidade de mudar o ambiente em que vive. Tampouco é suficiente a definição de “homo sapiens”. Para nós, o homem se define como “homo orans”, já que adora, escuta e responde a Deus, conferindo verdade à sua própria existência.
- Sem oração o homem não chega à verdade nem descobre seu nome. Nossa existência é dom. Somos chamados pela palavra criadora de Deus e esta palavra é convite para vivermos conscientes em sua presença. Vivendo através do chamado que nos dá vida, podemos encontrar-nos na escuta e na resposta diante de quem nos dá um nome único e tudo o que somos. Não podemos encontrar nossa identidade a não ser voltando-nos para Deus, que é origem e fim de nossa vida.
- Não nos é possível definir o homem sem recorrer ao entendimento da oração. E, do mesmo modo, não podemos compreender a verdadeira natureza e a meta da oração sem compreender a vocação total do homem. Quem é o homem que reza? É oração refletir sobre o mistério do próprio ser? É oração o ato de quem admira a grandeza do universo ou tenta compreender o significado de sua própria existência? Certamente esses atos são fundamentais no homem, pois ele expressa neles sua dignidade e sua dinâmica para o verdadeiro e o bom; mas não podemos definir tudo isto como oração.
- As três notas indispensáveis com que se caracteriza a estrutura interna de quem experimenta a realidade da oração são:
“A fé no Deus pessoal, vivo.
A fé em sua presença real.
Um dramático diálogo entre o homem e Deus que se sabe estar presente”.
1. A fé no Deus pessoal, vivo.
Não se fala de idéia, de coisa ou de força impessoal. Quem faz oração sabe que se encontra diante da sabedoria suprema, que o conhece. Não basta a fé no significado da vida ou numa pessoa humana, mas é necessária a fé em Deus, no Amor.
2. Fé na presença real de Deus.
Quem faz oração tem fé na presença real e ativa de Deus, que se revela e que nos convida desta forma a que lhe respondamos: “ a presença verdadeira só é possível como resposta `revelação real de Deus. A fé vive da oração. Realmente a fé viva em sua essência não é outra coisa senão oração. No momento em que cremos realmente, expressamo-nos por meio da oração; e no ponto em que cessa a oração cessa também a fé viva”.
3. Confiança em que o Deus que nos fala e continua revelando-se há de escutar a nossa oração.
A oração supõe, portanto, a relação tu-eu e eu-tu. A fé que dá força à oração pode ser condensada da seguinte forma: “Tu és e eu sou graças a ti e tu me convidas a viver contigo”.
- Estas três condições constitutivas da oração estão presentes onde existe religião autêntica. Mas isto não exclui que a conceitualização possa não ser muito clara. Pode acontecer que pessoa determinada se declare panteísta (Panteísmo, crença que identifica Deus e o mundo. Concebe Deus como a única realidade subordinada, emanação ou ‘processo de Deus’, segundo Spinoza), ao passo que na realidade faz oração e considera Deus como um “tu”. Onde se faz oração com confiança e com fé viva, aí está a presença do Espírito de Deus. E a graça de Cristo não está ausente, embora quem faz a oração não conheça nem Jesus nem o mistério da Trindade.
2. O caráter especificamente cristão da Oração
- “Diante de Deus não há acepção de pessoas” (Rm 2,11). Ao falar, portanto, do caráter especifico da oração cristã, não devemos vangloriar-nos diante dos que não são cristãos. Impõe-se, no entanto, a meditação sobre os muitos motivos de reconhecimento pela vocação que nos foi reservada, e sobre a conseqüência de devermos dar testemunho atraente e convincente de nossa oração. O cristão que reza sabe o que é a vida eterna: conhece a Deus como Pai do Senhor Jesus, conhecer Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mediador entre nós e o Pai, e crer no Espírito Santo que ora em nós.
1. Abbá, Pai!- Todas as orações de todos os tempos alcançam seu ápice em Cristo, que chama o Deus onipotente de ‘Pai’ de forma única: seu ‘Abbá, Pai!’ ecoa nos corações dos apóstolos, e com este nome Jesus nos convida e nos ensina a nos dirigirmos a Deus. Não cremos apenas no Deus pessoal, criador, onipotente, mas nós o adoramos e o amamos como Pai, nosso e do Senhor Jesus. isso nos dá uma confiança única; não nos esqueçamos, porém, de que ele está “nos céus”, isto é, que se trata do Deus santo, ao passo que nós somos as criaturas, pecadoras, quanto mais conscientes estivermos do nosso pecado, tanto maiores serão não só nosso temor, mas também a gratidão, a alegria e a felicidade na oração.
Cristo tornou o Pai visível. Mas nossa oração não poderá unir-se à sua quando invoca o Pai, se nós não nos unimos também ao amor que ele manifestou possuir por todos os homens.
Cada um de nós está diante de Deus com nome irrepetível; mas, para encontrarmos este nome, devemos viver a solidariedade da salvação, que nossa fé expressa em nosso Pai e em Cristo, solidariedade de salvação encarnada.
2. Oração em Cristo e a Cristo - em Cristo o Pai está mais perto de nós e manifesta-se como “Deus conosco”. Somente em Cristo podemos atrever-nos a dizer “Pai nosso”. É Cristo que nos mostra o valor de orar com confiança com ele aprendemos a adorar a Deus em espírito e verdade, e esta adoração só tem valor enquanto se une à sua e é oferecida em seu nome. A oração cristã tem como base não só a fé em Cristo, mas também seu conhecimento.
Na liturgia nossa oração costuma dirigir-se ao Pai por meio de Cristo nosso Senhor. Ele, verdadeiro homem, assume nossas orações e lhes dá o valor da sua. Mas Jesus é também verdadeiro Deus; por isso nossa oração litúrgica comunitária, e com maior razão nossa oração pessoal, pode dirigir-se diretamente a ele. Não se pense que desta forma se deixo o Pai relegado, pelo contrário, em Cristo fortifica-se a união com Deus no espírito Santo. A Cristo podemos oferecer o culto latrêutico.
3. Creio no Espírito Santo – a oração especificamente cristã expressa a fé viva na Trindade. Cremos no Espírito Santo, doador de vida e que é adorado juntamente com o Pai e com o filho. Podemos adorar a Deus em espírito e em verdade justamente porque somos filhos de Deus guiados pelo Espírito. (cf. Rm 8,15-16)
É o Espírito Santo que nos dá a sabedoria e o gosto pela oração correta. Torna-nos vigilantes na espera do Senhor e atentos aos sinais dos tempos, que são os sinais de presença de Deus. E assim torna-se possível, graças ao Espírito, a oração, que é integração entre fé e vida.
3. Oração: presença e escuta de Deus
- Deus está sempre presente, mas esta sua presença só é recebida e só transforma a nossa vida se oramos. Por meio da oração cumpre-se a reciprocidade das consciências e a presença recíproca. A presença divina é fonte de vida e de luz. Na oração tomamos consciência dela e nos abrimos à vida e à luz. Nela vivemos com intensidade o momento presente, porque encontramos o Senhor da história no reconhecimento por tudo o que nos deu no passado e na espera da transfiguração final.
- A iniciativa divina
- Na oração especialmente cristã manifesta-se grande consciência da iniciativa divina. Deus nos amou antes que nós existíssemos e nos chama antes que tenhamos dado o mínimo passo em direção a ele. Esta iniciativa do Senhor é enfatizada por toda a nossa fé. A justiça que nos salva, a paz messiânica, a reconciliação, tudo é concebido como dom gratuito e iniciativa de Deus. “Tudo vem de Deus, que nos reconcilia com ele por meio de Cristo” (2Cor 5,18). A experiência mística dos santos caracteriza-se pela consciência desta iniciativa, e tanto maior será o progresso da vida espiritual do homem quanto mais será atento e agradecido por ele ao dom que lhe é dado.
- Para o homem de oração, todas as coisas trazem a marca da iniciativa divina e convidam ao louvor, à gratidão e à adoração. Deus fala mediante as realidades criadas. Todas as obras de Deus são palavras, mensagens, dons e convites para dar-lhe graças e alegrar-nos. Sabemos que o ato de admiração diante da beleza do criado não pode chamar-se oração; não obstante, ele é indispensável para o seu desenvolvimento. De fato, quanto mais uma pessoa progride na oração, tanto maior é sua admiração pela criação, porque tudo fala da grandeza, majestade, da sabedoria e da bondade de Deus. O cristão se regozija a contemplar a evolução do mundo, pois tudo aparece e se converte em mensagem mediante o Verbo eterno e com vistas à encarnação. “O céu manifesta a glória de Deus e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sl 19,2).
- Especialmente a presença de Deus se manifesta no homem criado à sua imagem. Deus está presente em nós e em nosso próximo como criador, redentor e artífice que leva adiante, para acaba-la, a obra que tão maravilhosamente começou. Esta obra prima é convite para colaborarmos com ele; devemos ser co-artífices e co-reveladores do seu amor. Todo homem é chamado a se converter em sinal visível, em sacramento da presença de Deus, para lembrar sua ativíssima presença e convidar ao louvor, à ação de graças e à intercessão. A escuta da palavra de Deus, presente na criação e, sobretudo no homem, converte-se em oração e quando adoramos e louvamos a Deus, ao mesmo tempo que demonstramos, diante de toda a realidade que nos circunda, a responsabilidade que constitui uma autêntica resposta ao Criador.
- A oração especificamente cristã é marcada pelo fato de que Deus nunca se expressa com palavras vazias, mas sua palavra é eficaz, é acontecimento e é obra visível. Assim, a oração do cristão jamais pode dissociar-se da história da salvação e dos acontecimentos, porém deve integrar-se como palavra que traz frutos de caridade, de justiça, de criatividade e de fidelidade.
Uma forma de presença ativa de Deus é constituída pelos sinais dos tempos. Para quem não crê e se negar a colocar seu coração à escuta da palavra, o livro da história é livro selado e carente de sentido. Mas, para o cristão, que conhece Cristo e reconhece nele o senhor da história, os acontecimentos históricos se transformam em palavra poderosa, que requer palavra solidária.
- Na sensibilidade diante dos sinais dos tempos e na vida solidária e responsável enraíza-se o caráter especifico dos cristãos, reino de sacerdotes. Esta dimensão torna evidente a impossibilidade de que a oração cristã se reduza a simples recitação de fórmulas. Diante do crente abre-se sempre a perspectiva e o programa do “pai-nosso”. Ele é vida: integração entre fé e vida pela vigilância diante dos sinais dos tempos e pela prontidão de resposta pessoal e solidária.
- O papel da sagrada Escritura
- A Sagrada Escritura é palavra de Deus de forma privilegiada. Sem a atitude de disponibilidade á resposta, não se pode medita-la e ela acaba deixando de ser proveitosa. Não esqueçamos que a escritura narra a história das relações de Deus com o gênero humano e deste com Deus. Por isso fala a todos os que permanecem integrados voluntariamente nesta história e estão dispostos a ser co-agentes da mesma junto com Cristo e com os santos.
- O estudo da Escritura presta serviço precioso à própria oração e à vida inspirada nela, porque ajuda a compreender a dinâmica da história da salvação e as circunstâncias concretas em que Deus fala e solicita resposta existencial e orante. Quem lê a Bíblia esperando unicamente receber consolo dela sem estar disposto a corresponder ao que ela diz como co-autor da história salvífica, prejudica a dinâmica da palavra divina e vê esvair-se sua própria meta. Mas também quem estuda o texto sagrado com atitude critica sem espírito de oração não se encontra no cumprimento da onda que permite captar seu autêntico significado.
- Todos nós, pelo menos uma vez em nossa vida, deveríamos sentir a exigência de ler a Bíblia inteira com especial atenção, porque ela nos ensina a escutar e a responder com toda a nossa vida. Então, ela seria para nós o que deve ser, escola de oração.
- Nem todas as orações do Antigo Testamento representam para o cristão resposta adequada a Deus. A situação do Antigo Testamento é diferente da nossa. Algumas orações ainda mostram a penumbra da época da espera. Mas a própria imperfeição daqueles sentimentos deve transformar-se em motivo de gratidão pelo dom da luz que recebemos em Cristo. E não devemos esquecer que tal imperfeição reflete a lenta trajetória da conversão de cada homem, inclusive do homem de hoje. Devemos aprender a orar como Cristo nos ensinou e como os grandes santos da nova aliança o experimentaram.
- O papel da comunidade de fé
- O crente não parte do zero na oração. Ele é sempre um ser um ser que renasceu na comunidade de fé, de esperança, de amor e de louvor a Deus. Também esta é iniciativa gratuita de Deus; convite ao reconhecimento e a docilidade. À comunidade nós nos unimos na escuta da palavra de Deus, na busca dos sinais dos tempos, na resposta cultual e existencial. Tanto mais eficaz será para nós o apoio da comunidade quanto mais dispostos estivermos a dar a nossa colaboração para a sua vida de fé e de compromisso total, e para o seu culto, lembrando que na comunidade se manifesta para nós a plena comunhão dos santos.
- A consciência da união com todos os santos aumenta nossa confiança na oração e ao mesmo tempo nos impele à solidariedade tanto na oração como na vida. A gratidão pela intercessão dos santos será uma razão para interceder por todos os homens.
- O papel do pobre
- Na tradição profética, a oração é descoberta da palavra que Deus dirige mediante o pobre. A aceitação humilde, agradecida e generosa do pobre é progresso no conhecimento de Deus e na verdadeira oração.
- O homem, imagem de Deus, revela-nos a face divina, quando nos aproximamos do próximo com amor generoso e desinteressado. Quando aceitamos o outro esperando dele possível recompensa, não se dará verdadeira transcendência do eu para o outro. Pelo contrário, se servimos humildemente o pobre reconhecendo seu direito à nossa solidariedade em sua dignidade e em sua miséria, então é sinal de que escutamos verdadeiramente a voz de Deus, que procede tanto do alto quanto de baixo. Este é um dos pensamentos centrais da filosofia e da teologia de Manuel Levinas; “O outro que enquanto outro se sita numa dimensão de altura e de abatimento, tem o rosto do pobre, do estrangeiro, da viúva e do órfão e, ao mesmo tempo, do Senhor chamado a investir e a justificar a minha liberdade”.
- Quem reconhece no pobre a dignidade e o direito de ser amado e ajudado supera o próprio eu e se faz pessoa em diálogo, enquanto ao outro se propõe o convite mais glorioso e urgente a responder. Respondendo desta forma ao pobre, responde-se a Deus, e chega-se ao conhecimento mais profundo da transcendência divina, condição necessária par a oração especificamente cristã. Esta oração é possível a todo homem de boa vontade.
4. A centralidade da Eucaristia
- O que dissemos até aqui sobre a oração especificamente cristã encontra seu ponto central na eucaristia. Nela adoramos o Pai em Cristo, com Cristo e por Cristo; nela recebemos o dom do Espírito, que ao mesmo tempo nos torna capazes de acolher tal dom supremo e de transformar a nós mesmos em dom.
- A eucaristia é o centro do culto da Igreja; ela sempre cria de novo a comunhão de fé, de esperança, de caridade e de adoração em espírito e em verdade.
1. Dar graças sempre e em todo lugar
- Eucaristia significa ação de graças, Jesus, tomando o cálice da salvação, aceitando sua suprema vocação de sumo sacerdote e de vitima “deu graças”. Ao celebrar a eucaristia, entramos na mesma dimensão, toda perversão e alienação entrou no mundo porque o gênero humano não quis dar graças e se negou a honrar a Deus como Deus. Na ação de graças e na adoração em espírito e em verdade oferecida a por Jesus Cristo ao Pai, realiza-se e cumpre-se nossa redenção. Entrando nesta dimensão de gratidão, o homem torna-se participante da redenção.
- É fácil perceber a dimensão eucarística em todas as partes da missa e sua manifestação em todos os momentos da vida e da oração.
O rito penitencial do começo e suas invocações durante a missa são uma confissão de louvor, um louvor ao Senhor porque ele é bom. Durante a missa, oferecemos orações, súplicas e intercessões em que espírito de gratidão, conscientes de que estão unidas às de Cristo e às dos santos.
Ao escutar a palavra de Deus, respondemos “Graças a Deus”, ou então: “Glória a vós, Senhor”. Não é possível receber a bênção da palavra de Deus sem escutá-la e acolhe-la com espírito de gratidão.
A profissão de fé na recepção jubilosa e grata da Boa nova, transforma a vida em fé agradecida que dá fruto na caridade e na justiça.
No ofertório afirmamos que tudo o que somos e o que possuímos é dom De Deus. Este dom tem dimensão social, e a ele deve associar-se o homem no serviço do reino de Deus e do próximo, e, somente entregando-se em resposta a Deus pode gozar de sua presença.
Com estas disposições, podemos entrar na grande oração eucarística, que nos mostra como via da salvação o dar graças sempre e em todo lugar.
2. Oração e sacrifício de si mesmo
- Cristo se torna presente e entrega-se na eucaristia. Ungido pelo Espírito Santo, ele entregou-se para a glória do Pai e pela salvação dos homens em toda a sua vida, e de forma particular no momento da morte. Cristo ressuscitado está presente no poder do Espírito Santo e continua dando-se e enviando este mesmo Espírito aos homens para que saibam entregar-se à glória de Deus Pai no serviço do próximo. Somente desta forma o homem participa verdadeiramente do sacrifício eucarístico e recebe a comunhão que permite a Cristo continuar sua obra salvífica nele e por seu meio. Também assim nós aceitamos nossa missão maravilhosa: a de sermos mensageiros de paz e de reconciliação.
3. A eucaristia: oração e evangelização
- A eucaristia é ação de graças que responde à proclamação solene e central da mensagem evangélica. Se os fiéis e os sacerdotes soubessem celebrar e viver o memorial da morte e da ressurreição de Cristo, sua vida se transformaria sob todos os aspectos em testemunho alegre e agradecido da salvação. Será, portanto, a celebração eucarística o que decidirá o futuro da evangelização.
A presença e a assistência do Senhor com vistas à evangelização tem seu ponto culminante da eucaristia; numa comunidade que dá graças pelo Evangelho e que vive nele a ponto de fazer de seus membros um evangelho vivo. Nunca haverá crise perigosa para as vocações sacerdotais e religiosas enquanto se souber celebrar aa eucaristia, proclamar o Evangelho e corresponder com gratidão; quem vive desta forma sabe que a consagração ao serviço da Boa Nova é um dos dons maiores de Deus.
4. O papel dos outros sacramentos
- Relacionados com a eucaristia, também os outros sacramentos são essenciais para a oração especificamente cristã. Os sacramentos são proclamação da Boa Nova de forma bem concreta e em ambiente cultual. São intercessão na comunhão dos santos. Sua oração de súplica expressa diante dos sinais da promessa. São pontos de encontro entre a palavra de Deus, que toca e transforma o homem, e sua resposta com Cristo na comunidade de fé.
No Batismo a oração que se apóia nele, nos dirige constantemente para a eucaristia, celebração central e culminante da nova e eterna aliança, que une entre si todos os batizados.
No santo crisma, a oração especificamente cristã expressa-se no credo. A oração que corresponde a este dom superabundante é, sobretudo a oração de ação de graças de louvor.
A celebração do sacramento da reconciliação nos prepara para gozar da comunhão. Celebrar este sacramento significa orar, tanto por parte do sacerdote quanto por parte do penitente, num diálogo que nos abre novas dimensões pessoais e sociais. O sacerdote louva e adora a misericórdia divina e o pecador expressa também por meio do louvor e da ação de graças a recepção do dom.
A ordenação sacerdotal é especificamente uma efusão do Espírito Santo. A vocação sacerdotal é em primeiro lugar vocação para ser homem e mestre de oração, para que todo o povo sacerdotal de Deus possa chegar à adoração em espírito e verdade.
O matrimônio entre cristãos é sacramento de forma distinta, porque os esposos recebem a certeza da presença de Cristo sempre que estão unidos em seu nome. É, portanto, fundamental a oração da família. Compete aos pais iniciar os filhos na oração que é integração entre fé e vida.
5. Tradição sacerdotal e tradição profética
1. O papel do sacerdote
- É definido como homem de oração, adorador de Deus em espírito e em verdade, homem espiritual que pode proclamar o mistério da salvação no culto e na vida, mestre de oração especificamente cristã. Para que todos os crentes saibam que se trata de oração autêntica. Os seminários deveriam ter como missão primordial a de serem escolas de oração, de forma que os sacerdotes sempre pudessem nela viver como irmãos e testemunhas visíveis de sua missão solidária de promover o espírito e a prática da oração.
2. Os desvios do sacerdotalismo
- Desvio típico presente no Antigo Testamento e na história da Igreja. Não se trata, evidentemente, aí do que constitui uma nota característica no sacerdote que participa do sacerdócio profético de Cristo, trata-se, pelo contrário, dos que não são homens plenamente espirituais ou que, reunidos em grupo, se consideram como classe privilegiada e tendem a manter os leigos em posição subordinada como seres imaturos, provocando assim grave desvio da oração. Nestas situações é fácil encontrar sacerdotes muito escrupulosos na observância das rubricas mais minuciosas ou na pronúncia de certas palavras, ao passo que se esquecem da missão principal: a adoração de Deus em espírito e verdade. Esse desvio tem como conseqüência reduzir a oração à recitação sem contato com as alegrias, as esperanças, as angustias e os sofrimentos dos seres humanos. Desta forma, falta uma das características essenciais, que é a integração entre fé e vida.
Justamente nesta decadência, verdadeira desintegração, manifesta-se a força do pecado original, do egoísmo. Onde faltam a espontaneidade e a criatividade na oração, a “carne” toma a dianteira. Este sacerdotalismo, tendência da classe sacerdotal demasiado preocupada com sua própria superioridade, comprova a verdade das afirmações do apóstolo Paulo: “Não como se fôssemos dotados de capacidade que pudéssemos atribuir a nós mesmos, mas é de Deus que vem a nossa capacidade. Foi ele quem nos tornou aptos para sermos ministros da Aliança nova, não da letra, e sim do espírito, pois a letra mata, mas o espírito comunica a vida” (cf. 2Cor 3,5-6).
4. A tradição profética
- Contra a degradação sacerdotalista, Deus em sua misericórdia enviou os profetas. Também havia entre eles sacerdotes, mas não eram maioria. Cristo é o profeta. E não pertence à classe sacerdotal. A oração profética brilha pela integração da fé na vida. Todo o seu se expressa diante de Deus na aceitação: “Eis-me aqui, Senhor, chama-me; eis-me aqui, envia-me”.
Modelo de sacerdote e de todos os membros do povo sacerdotal de Deus. Cristo o é sempre como profeta, como adorador do Pai em espírito e verdade. Jesus nos ensina a síntese entre oração e vigilância, entre amor de Deus e do próximo.
Onde se vive a tradição profética não existe o penoso complexo de insegurança. A oração profética é o distintivo do povo de Deus peregrinante que caminha atrás do Senhor da história. Sobretudo em épocas de profundas transformações culturais e sociais, devemos recorrer a Cristo como profeta e constatar nossa continuidade com a história profética da Igreja.
6. As devoções
- Nas devoções que a piedade popular tornou tradicionais, quando celebradas com espírito adequado, encontra-se a riqueza da oração.
Visita ao Santíssimo Sacramento – a presença humilde e contínua de Cristo na tabernáculo sempre disposto a receber e a visitar os enfermos, poderá reavivar nossa memória agradecida. A mera presença diante daquele que fica conosco pode trazer-nos paz, alegria e muitas vezes grande entusiasmo, que se expressa na oração afetiva. A visita ao Santíssimo Sacramento é a continuação contemplativa da celebração eucarística e nos prepara para a seguinte. Do mesmo modo poderemos considerar a bênção eucarística; nela louvamos a encarnação, da morte e a ressurreição de Cristo à espera de sua vinda, fonte de toda bênção.
Via sacra – é uma devoção fácil e atraente, que tem raízes também na forma contemplativa da celebração litúrgica.
Veneração da Virgem Maria, o rosário, o terço, quando recitado meditando verdadeiramente os mistérios principais da nossa salvação, evidencia sua relação com a eucaristia. É importante, porém, que não seja meditação mecânica do Pai-nosso e da ave-Maria. Deve haver tempo suficiente para ler o relato evangélico do mistério e tempo suficiente para a meditação e a oração espontânea tirada das fórmulas tradicionais da oração.
SC 13 – “Recomendam-se encarecidamente os exercícios piedosos do povo cristão, contanto que estejam de acordo com as leis e as normas da Igreja... Ora, é preciso que estes mesmos exercícios se organizem levando em consideração os tempos da liturgia, de certo modo dela decorram e a ela conduzam o povo, já que a liturgia por sua natureza está muito acima deles”.
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